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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

No teu deserto - Miguel Sousa Tavares

"(...) Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.
A verdade é que, agora que me sento para te escrever, reparo – mas sem nenhum espanto nem estranheza – que não preciso de inventar nada: lembro-me de tudo, exactamente tudo, hora por hora, quase cada olhar nosso, cada gesto, cada sorriso, cada amuo. Sim, às vezes me acontece esta coisa curiosa, quando olho para trás através dos anos: lembrar-me de todos os detalhes – até daqueles que na altura achei que não teriam nenhuma importância nem significado – e todavia ser incapaz de situar o tempo exacto em que vivi as coisas. Como se as continuasse para sempre a viver, ou como se nunca as tivesse vivido." (p. 9, No teu deserto)

No teu deserto é um livro que chama atenção em primeiro olhar. Talvez pelo título, que faz meu coração que adora um romance saltar de vontade de ler. Talvez pelo início do capítulo I, que começa com uma faceta estilística que eu adoro, a quebra da expectativa: "(No fim, tu morres. No fim do livro, tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefícios apenas da história que se quis contar. Assim, tu morrer e eu conto. E ficamos de contas saldadas.)"´

Eu não havia lido isso antes de comprar o livro, mas logo que o abri e li essas primeiras linhas, tive uma espécie de suspiro que significa exatamente: ainda bem que ainda existem livros assim. Digo "ainda existem" porque No teu deserto foi lançado em 2009. E eu andava meio com sede de ler uma literatura de agora, e algumas experiências não foram tão boas quanto eu imaginava. No teu deserto foi escrito por Miguel Sousa Tavares, um jornalista português. O livro é uma espécie de narração autobiográfica e visceral. Narra a viagem que um jornalista fez com Cláudia, uma mulher 15 anos mais nova, ao Saara. Os dois ainda não se conheciam antes da viagem, porém, durante ela vai-se criando uma cumplicidade muda, uma relação baseada em silêncios e proximidades. Fazendo das palavras da contra-capa as minhas: "Ao final da travessia, a ligação entre eles é maior do que ambos poderiam imaginar. E o relato dessa aventura se impõe então como uma necessidade profunda: dar sentido não apenas à viagem, mas também ao encontro amoroso, ao regresso à casa e a uma nova vida, feita de tempo, memória e transformação." Eu consigo resumi-lo como um livro exato, mas não se enganem achando que é uma exatidão daquelas que cumprem o seu papel de arrepiar uma ou duas vezes e pronto, fecha-se o livro e coloca-se na estante. É uma exatidão de palavras encaixadas, de carga semântica perfeita, de polifonia - o livro tem duas vozes - de carga sentimental e de sentimento nostálgico e saudosista, bem português, como não podia deixar de ser.

Ao final da última página, suspiro novamente, com a pele já arrepiada de tanto sentimento-palavra, literatura-vida, e afirmo novamente: ainda bem que ainda existem livros assim.


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